Eliane Brum

Correspondente

de guerra.

Na Amazônia.

Este texto foi originalmente publicado na Revista Imprensa

A repórter Eliane Brum mostra de sua janela o rio Xingu, lá longe, correndo azul onde acaba o verde da floresta. Entre os dois, observador e observado, há algo em comum: a renovação constante, apesar de represados pela hidrelétrica de Belo Monte e pelo olhar condicionado do curso da vida. Mas há momentos em que ambas as comportas se abrem.

Eliane Brum aprendeu a se desprender de si própria para ver e ouvir com total atenção e isenção, como se fosse uma página em branco a ser marcada. “Sou uma escutadeira e olhadeira” —orgulha-se. Mais que uma ferramenta de trabalho de jornalista, é também uma postura de vida. Aqui pode estar uma explicação para sua produção original, única e em permanente mutação que já lhe rendeu 70 prêmios internacionais e nacionais, entre os mais cobiçados por jornalistas. E agora, ela lançou o seu nono livro, “Banzeiro Òkòtó (pronuncia-se com ^ nos ós), Uma Viagem à Amazônia Centro do Mundo”.

Brinquei com Eliane, em nossa primeira conversa virtual, que sabia qual era o verdadeiro segredo de seu sucesso: é que ela passou a infância bebendo água de sua cidade natal gaúcha, Ijuí, que em guarani quer dizer “Águas Divinas”. Só podia ser isso, um milagre. Ela riu. 

Eu a vi em mais de 30 entrevistas ao vivo pelo lançamento do seu novo livro. Mesmo às perguntas muito repetidas ela respondeu pacientemente,sem se incomodar, com visível laringite, audível tosse e uma coceira insistente nas costas — são os mosquitos lembrando que na Amazônia todos têm um corpo. 

Durante nossa teleconversa, surgiu um dos dois gatos, o Capitu, ou Capetu; um galo cantou várias vezes perdido em fusos horários; os três cachorros latiram muito, e o barulho de uma motosserra reinou no ar: “Você está desmatando?”, provoquei. Kkkk. Não: ela está preparando a casa em que vai viver com o marido britânico Jonathan Watts, que chega em dezembro para ficar 11 meses, em licença do jornal The Guardian, para escrever um livro. “Comprei madeira de demolição. Qualquer outra, aqui, é da floresta, mesmo que certificada, e não a uso”. Um gole no chimarrão, e ela diz: “Vou lhe mostrar a vista da janela”.

Lá longe, o Xingu…

“Sou uma escutadeira e olhadeira” 

Lá longe no tempo, Eliane, aos cinco anos, viu o pai, Argemiro Jacob Brum, ser “humilhado” pelo prefeito de Ijuí. Primeiro da família a ser alfabetizado, ele se tornou professor de Português, História, Geografia e Contabilidade, e um dos fundadores, em 1957, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FAFI), a pioneira do noroeste do Rio Grande do Sul, em 1985 reconhecida como universidade pelo Ministério da Educação. Foi “a primeira da Nova República”. Uma escola rural estava ligada à FAFI, ao tempo da ditadura. O prefeito das “Águas Divinas”, Emídio Odósio Perondi, da Arena, taxou-a de “subversiva”, porque seguia o método Paulo Freire e ainda respeitava o calendário das colheitas, e a passou para o poder municipal administrar.

“Foi a primeira vez que vi meu pai humilhado”, contou Eliane em sua maratona de entrevistas pelo lançamento de Banzeiro Òkòtó. “Pensei que tinha que fazer alguma coisa, que não podia permitir que meu pai fosse humilhado. Decidi então por fogo na Prefeitura”.

Naquela noite, Eliane não dormiu. Antes que alguém acordasse, lá foi ela para o outro lado da praça de sua casa, onde os pais a proibiam de ir. Ali ficava a Prefeitura. Um, dois, todos os fósforos, nenhum acendeu o incêndio. Ela voltou frustrada do seu “ímpeto revolucionário”, mas também aliviada. “Meu irmão depois me explicou que no cimento não dava”.

Foi aí que a primeira chama do jornalismo começou a queimar Eliane. “Descobri que jornalismo é o meu jeito de não pôr fogo no mundo. Que escrevo para não matar e morrer.” Aos oito anos, ela matou uma baratinha. Só se aliviou da culpa escrevendo “A autobiografia de uma barata”, o seu primeiro texto, guardado ainda hoje num caderno de capa vermelha. E de novo constatou: “Sempre digo que escrevo para não matar e para não morrer”. Aos nove anos, Eliane cometeu a sua primeira poesia, “muito ruim”, numa manhã de chuva supermelancólica. “Aquilo me mostrou que escrever era um ato de vida, um ato de fazer viver, de poder estar viva e de lutar pela vida e por tudo aquilo que é vivo. Essa experiência com a palavra pariu a mulher que eu sou hoje”.

A infância “foi um terror” para Eliane. “Escrevia para não cortar os pulsos. E ia deixando os pedaços de papel pela casa, como uma espécie de pistas que meu pai ia recolhendo. Aí, um dia, ele veio com a notícia de que ia publicar. Eu fiquei toda orgulhosa. Ao mesmo tempo, me senti nua. Depois disso parei de escrever por uns tempos, por causa desta exposição das minhas vísceras. Só voltei na adolescência. Parei quando fui mãe. E voltei quando virei repórter”.

Eliane foi mãe de Maíra aos 15 anos. “Fui uma adolescente bem terrível”, lembrou. Tantas constatações de que seria jornalista na vida, e ela acabou prestando vestibular para Biologia. Ia se inscrever também para Informática, na PUC, quando soube, na fila, que tinha muita matemática. Aí entrou para jornalismo. E fez História também.

Ainda estudante, ela escreveu uma reportagem sobre as filas que todos enfrentamos durante a vida. E aí, sem filas, ei-la catapultada para estagiar na redação do jornal Zero Hora, de Porto Alegre. Só saiu de lá onze anos depois, convidada para a revista Época, onde ficou outros dez.

Muito do que se tornou Eliane não deve ser atribuído apenas às Águas Divinas. O pai, Argemiro, foi fundamental. Alfabetizado por uma professora negra, Luzia de Figueiredo Neves, a quem a família Brum deixa uma flor no túmulo todos os anos, ele não só se tornou “professor emérito” do Rio Grande do Sul, em 1992, e um dos fundadores e diretor da Universidade de Ijuí, a Unijuí, como também escreveu 40 livros, entre eles “O Desenvolvimento Econômico Brasileiro” (Vozes), reeditado 30 vezes. Morreu de AVC, aos 86 anos, em 2016.

“Quando minha família me pediu um obituário, tive de imediato uma queimação no estômago. Antes de meu pai cessar de respirar, eu me despedi dele. No final da tarde de 4 de agosto, logo depois de assistir ao jogo Brasil X África do Sul, ele teve o primeiro AVC. No hospital teve o segundo, e entrou em coma. Morreria menos de 24 horas depois. Assim, quando me despedi dele, talvez ele já não me ouvisse. Mas eu me despedi, e agradeci a ele por ter me dado a palavra. Meu pai me deu a palavra de tantas formas diferentes. E quando ele morreu senti que as palavras silenciaram em mim. Se as palavras sempre haviam sido insuficientes para dar conta da vida, como dariam conta daquela morte?”

No obituário, Eliane lembrou como Vanyr Burtet, a mãe, viu o pai quando tinha 13 anos, e decidiu: “Este vai ser meu”. E foi mesmo. “Começaram a namorar quando ela tinha 15 anos, depois que ela mandou um ‘correio elegante’ sutil como uma pedrada: ‘Se meu amor for correspondido, serei a mulher mais feliz do mundo’. E foi. Esta data é conhecida lá em casa como ‘o dia do tijolaço’. Estavam há 65 anos juntos e ainda comemoravam todas as efemérides de seu romance. No aniversário ‘de conhecimento’, a mãe ganhava rosas. O banco de praça onde namoravam foi transferido para o museu. Enquanto existiu um certo poste, o visitavam periodicamente para rememorações. Andavam de mãos dadas e dormiam de conchinha, vencendo por amor as dores na coluna.”

Outra morte que mexeu profundamente com Eliane foi a de Ailce Oliveira Souza, uma merendeira de escola, em julho de 2008. “Me arrebentou”, ela disse numa entrevista. Era uma reportagem para a Época. Por 115 dias ela acompanhou a morte se aproximando, e chegar. “O que Ailce me deu é algo para sempre. E algo raro: ela confiou em mim a ponto de me deixar testemunhar o fim de sua vida e contar uma história que ela jamais leria”. Sobre a morte de Marielle Franco, assassinada em 2018, no Rio, ela pergunta diariamente pelas redes sociais, logo ao acordar: “Quem mandou matar Marielle? E por quê?”

Ailce Oliveira Souza: 115 dias até a morte.

A melhor reportagem, para Eliane, é sempre a última. Mas se ela tiver que destacar alguma outra além dos últimos dias de Ailce, escolherá a marcha da Coluna Prestes, que refez em 44 dias, em 1993. Por 25 mil quilômetros ela entrevistou uma centena de pessoas que lhe deram uma versão até então desconhecida, a do “povo do caminho”, ou “o avesso da lenda” — não a de rebeldes, nem a de governistas. É marca dela: tirar da mesmice o singular, o novo do já conhecido. O Zero Hora soube aproveitar esse potencial de sua repórter: deu-lhe um espaço onde ela pôde contar os “meus desacontecimentos”, aos sábados. As crônicas foram reunidas no livro “A Vida que ninguém vê” (Arquipélago, 2006). E quando ela foi embora do jornal, não houve quem a substituísse.

Outro traço de Eliane é o de seguir em frente, sem se acomodar ao que já fez. Da palavra impressa, pulou para o cinema. Ela co-dirigiu três dos quatro documentários que fez: “Uma História Severina”, de 2005, premiado 17 vezes, no Brasil e exterior, e mais “Gretchen Filme Estrada”,”Laerte-se” e “Eu+1: uma jornada de saúde mental na Amazônia”. Pulou também para a palavra falada, convidada a dar palestras na Itália; em Madri; no PEN World Voices Festival, em Nova York; em dois eventos criados pelo escritor Salman Rushdie; uma série em Frankfurt, Munique e Giessen, na Alemanha; na Universidade da Flórida, em Miami; na de Dartmouth, em New Hampshire, e em Harvard, onde falou sobre “A Amazônia e a criação de futuro”.

Eliane decidiu ser freelancer, chefe dela mesma, dona dos prazos e tamanhos de seus textos, em 2010, e três anos depois começou a escrever colunas para o jornal espanhol El Pais. Mas foi em 2017 que tomou uma das decisões mais fundamentais de sua vida: a de mudar-se para o centro do mundo — para ela, Altamira, o front da destruição da maior floresta tropical do planeta. Repórter tem que estar onde está a notícia. E nada mais importante, hoje, que o colapso do clima. Ela já tinha ido a Amazônia várias vezes como enviada especial a partir de 1998, quando escreveu sobre a rodovia Transamazônica para o Zero Hora. Agora, seria como uma correspondente de guerra, e de sua trincheira avistaria o Brasil e o mundo.

Foto de Lilo Clareto

“Escolhi habitar o centro do mundo”, ela explicou. “Há anos defendo, junto com outros, a necessidade de deslocar o conceito do que é centro e do que é periferia. Num planeta em colapso climático, os centros são os enclaves naturais de vida, como oceanos e florestas tropicais, aqueles cuja sobrevivência é essencial para barrar nossa própria extinção num planeta que superaquece. É também nesses centros que estão as pessoas que por milhares de anos conviveram com a natureza sem destruí-la, sendo natureza elas também. Como jornalista, eu queria estar no centro do mundo e contar o planeta desde o centro.” Ela também é militante ativa em movimentos sociais. Foi uma das fundadoras, e participa ativamente, do Liberte, o Futuro e do Amazônia Centro do Mundo — uma parte global, com ativistas de diferentes países, cientistas, pensadores, indígenas, quilombolas, ribeirinhos etc., e outra local, no Médio Xingu, que junta diferentes organizações e pessoas avulsas. Mas ela não atua em nenhuma organização formal, porque aí seria complicado conciliar com o jornalismo.

Não é que Eliane pula de uma missão a outra assim de repente. Ela vai se preparando, maturando a estratégia, e tem que sentir uma comichão dentro do corpo, um “incômodo”. Ela me disse que “as melhores mudanças na minha vida vieram pelo incômodo”. Hoje, talvez, a palavra mais apropriada seja banzeiro, o redemunho de “brabeza” que a atraiu no rio Xingu e que agora carrega em suas entranhas. Ela também está se “reflorestando”, identificada com a floresta. E amazonizando-se. O vocabulário denota o grau de empatia entre ela e o seu admirável mundo novo. Em contrapartida, ela vai observando que verbos como duvidar, comparar, confrontar ou testar estão sendo trocados por acreditar. “As pessoas passaram a ler a realidade da mesma forma que leem a Bíblia”, ela escreveu ao comentar o Nobel da Paz de 2021 concedido a dois jornalistas. “Destruir a linguagem é tática para ganhar o poder”, concluiu. A crise da imprensa seria sequela do rompimento da palavra, agravado pelo negacionismo. Quem acredita em Bolsonaro? Quem acreditou em Trump? A quantas mentiras gravíssimas já demos ouvidos? 

Eliane estava andando com a psicanalista e amiga Ilana Katz por Altamira, em 2016, quando lhe disse, “sem saber de onde vinha aquela voz”: “Vou me mudar para Altamira”. E lá veio ela, de mala e cuia de chimarrão. Quem largou tudo para segui-la foi seu parceiro fotógrafo Lilo Clareto, que “se encantou em onça” ao morrer de Covid-19, em abril. 

Lilo, o que “se encantou em onça”.

Banzeiro Òkòtó tem uma dedicatória a Lilo e traz uma galeria de suas fotos da Amazônia. Eliane responsabiliza Bolsonaro, diretamente, pela morte dele e de grande parte dos mais de 600 mil mortos, por causa do negacionismo que equiparou a pandemia a uma “gripezinha”, ofereceu cloroquina como antídoto, pregou a desobediência ao distanciamento social, à máscara e ao confinamento, e ainda espalhou que a vacina provocava Aids. Ela defende que Bolsonaro seja julgado por extermínio, na população geral, e por genocídio, no caso dos indígenas, especialmente pela pesquisa realizada em mais de três mil normas federais, cuja conclusão é de que o presidente e seu governo executaram um plano de disseminação do vírus para obter imunidade de rebanho.

Além de se reflorestar, Eliane também se tornou a voz da Amazônia gritando “socorro!” O desmatamento (recordista em outubro), incêndios, grileiros, garimpeiros, a hidrelétrica de Belo Monte (a licença por renovar) e a mineradora canadense Belo Sun, que projeta a maior mina de ouro a céu aberto do mundo, na Volta do Xingu, estão levando a Amazônia ao ponto de não retorno. É “o minuto antes da meia-noite” — declarou o primeiro-ministro britânico Boris Johnson na abertura da recente COP26, em Glasgow, para governantes de 197 países. “Estamos cavando nossas próprias covas” — arrematou o secretário-geral da ONU, o português António Guterres. 

Banzeiro Òkòtó “é um chamado à maior luta da trajetória de nossa espécie na única casa-planeta que temos, uma luta contra a autoextinção que só poderá ser vencida se formos capazes de nos tornarmos outro tipo de gente…”

Quando teleconversamos, Eliane vestia uma blusa com fotos da pintora mexicana Frida Kahlo. As duas se parecem, inspiradas na natureza e no questionamento de gênero, classe, raça e identidade, uma com traços, outra com palavras. Disse-lhe que temia por sua vida, afrontando tantos poderes, grileiros e garimpeiros, em defesa de povos-floresta, quilombolas, ribeirinhos e refugiados de Belo Monte, hoje miseráveis na periferia de Altamira. Lembrei de Chico Mendes e Dorothy Stang, ambos assassinados. Ficou em silêncio por um momento, depois concordou: “Eu sei que corro risco. Mas também sei que o meu risco é infinitamente menor do que de todas essas lideranças que estão com seus corpos na linha de frente na floresta”. O tempo mais perigoso do ano está começando agora na Amazônia: o Ministério Público Federal, Defensorias (da União e do Estado) e as ONGs vão se esvaziando pelo recesso do Natal e ano novo. Para quem está marcado para morrer, a alternativa é procurar refúgio, porque a bandidagem corre solta. Os grileiros chegaram ao poder. Estão nas prefeituras. Estão no executivo. Seus crimes foram legalizados.

Numa entrevista ao vivo, o jornalista Breno Altman, do Ópera Mundi,perguntou se a emergência social não seria maior que a climática. Para Eliane “não há nada superior à emergência climática. Ela não está acima, ou abaixo de nada. Atravessa tudo. Jornalista, hoje, é um jornalista climático, ou não é jornalista”. E dá o exemplo da grande imigração em massa de refugiados climáticos. O refugiado dirá que está fugindo da fome ou da violência. Mas, se questionado um pouco mais, vai explicar que o clima mudou, veio a seca — e com ela a fome e a violência. Uma frase da sueca Greta Thunberg volta-lhe sempre à memória: “Nossa casa está pegando fogo”. E nós? “Nós ficamos sentados no sofá”. O veterano jornalista Ricardo Kotscho considera Eliane “a melhor repórter do Brasil, embora escreva num jornal espanhol, El Pais”. E acrescenta: “De lá, do meio da selva amazônica, ela consegue enxergar melhor do que nós o que está acontecendo no país…”

Pergunte-se a Eliane o que, afinal, é òkòtó, e ela prefere que a resposta seja encontrada no livro. Com meu espaço no fim, pulo para a última pergunta que fiz a Eliane: se ela, como as outras vezes em que estava perto de uma mudança, não estaria sentindo agora um “incômodo”, o banzeiro a puxando para um novo desconhecido. Ela respondeu “não”, porque “estou longe de completar meu processo de reflorestamento e tenho um monte de planos. Estou só no início”.


Livros de Eliane Brum

Rosental, Rosentelex, Rosentalcom.

(Este perfil de Rosental Calmon Alves foi publicado na revista Imprensa de set/out 2021)

O "Grande Guru", segundo o jornal El Pais.

Do “Rosental, repórter policial de O Jornal”, ao “Rosentelex” e atual “Rosentalcom”, o professor Rosental Calmon Alves deixou um rasto de inovações fundamentais para o jornalismo — e não só o brasileiro. Lá está ele, via zoom, em sua casa em Austin, no Texas, bebericando uma taça de Malbec rosé argentino, depois de um dia de trabalho no Knight Center for Journalism in the Americas. “Está um calor danado”, ele comenta.

(Aviso: somos amigos, mas não nos víamos há muitos anos.)

O jornal espanhol El País descreveu Rosental: “Grande teórico do jornalismo na web, grande guru ibero-americano do advento da internet, homem adiantado a seu tempo”. Que o Guru releve que o publiquemos em papel, primeiro, e na internet, depois. Deveria ser o contrário. Ainda não cometemos o “midiacídio”, palavra que ele inventou, no longínquo 1999, para prescrever que só a morte do sistema de fazer jornalismo da Era Industrial abriria as portas para o novo mundo do jornalismo da Era Digital. “Somos a geração da transição.”

O Guru também receita surpreender os leitores. Tento agora, com uma informação pouco conhecida: Rosental Calmon Alves ia ser padre, frequentou seminário jesuíta. Abandonou-o, mas continua católico aos 69 anos. A religião importa, porque “todo mundo tem que ter um norte na vida.” Outra recomendação do Guru: dialogar com os leitores, que não são mais passivos, e contar como é o trabalho para produzir um artigo. Então, conto que Rosental me deu muito trabalho. Tentei entrevistá-lo por duas horas, mas pulularam lembranças de coberturas em que nos encontramos, rivais em jornais concorrentes: voamos com P.C. Farias de Bangcoc para SP; estivemos na crise que levou à invasão americana no Panamá; em El Salvador; em reuniões do FMI e Banco Mundial; no primeiro lançamento de um ônibus espacial após o desastre da Challenger, e o dia a dia em Washington na época da moratória brasileira, encontros Reagan-Gorbachev, a queda do Muro de Berlim, eleições americanas… Digna de nota dessa época foi a declaração do nosso embaixador nos EUA, Marcílio Marques Moreira, ao saber que o Rosental não tinha morrido no Bateau Mouche, no réveillon de 1988: “Muito desagradável ter sido dado como morto”. Ele passava o réveillon navegando defronte a Copacabana, mas em outro barco.

O que mais define Rosental é o adjetivo primeiro. Ele foi o primeiro brasileiro a receber uma bolsa de estudos da Fundação Nieman, da Universidade de Harvard, em 1987. Em 1991, ele criou o primeiro serviço de notícias em tempo real do Brasil — uma parceria entre o Jornal do Brasil e a Bolsa de Valores do Rio de Janeiro. Quatro anos depois, 1995, foi o primeiro a pôr na internet um jornal brasileiro, o JB online, um dos pioneiros na América Latina. Em 1997, deu o primeiro curso de jornalismo online na Universidade do Texas, em Austin. Depois, em 1999, idealizou e organizou o Simpósio Internacional de Jornalismo Online (ISOJ, em inglês), uma conferência anual que organiza até hoje. Com um financiamento de dois milhões de dólares da Knight Foundation, em 2002, ele estabeleceu o Knight Center for Journalism in the Americas. E aí vieram, com sua ajuda determinante, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), o Fórum de Jornalismo da Argentina (FOPEA), do Paraguai (FOPEP) e várias outras similares (a mais recente, a Ajor, Associação de Jornalismo Digital, que reúne dezenas de startups jornalísticas no Brasil, fundada em maio de 2021). E em 2012, ele formatou o primeiro programa de curso aberto online massivo (MOOC, em inglês), único no mundo especializado em jornalismo, pelo qual já passaram 250 mil estudantes de 200 países até agosto deste ano. Claro que, diante disso tudo, Rosental entrou para o Hall of Fame da Associação Nacional de Jornalistas Hispânicos, em 2018.

O início da trajetória que o levou até à taça de Malbec rosé, às vezes branco, do nosso reencontro, foi o ano de 1968, quando ele tinha 16 anos. Já dava os primeiros sinais de pioneirismo: ia fundar uma Associação Estudantil de Imprensa, não fosse detido antes, com alguns companheiros. A ditadura estava no auge. Era “O Ano Que Não Terminou”, descrito por Zuenir Ventura em livro. Rosental estagiou na redação de O Jornal, no Rio, e logo se mudou para Vitória, em 1969, onde morou com o irmão e outras cinco pessoas, entre elas Gerson Camata, senador que seria assassinado 49 anos depois, aos 77 anos.

“Como Camata acordava cedo para fazer um programa de rádio às 7 horas, eu comecei a ir com ele e me ofereci para trabalhar de graça”. Dias depois, numa barbearia, Rosental conheceu o jornalista capixaba Rubinho Gomes, que o convidou: “Apareça lá nO Diário”. Mais que aparecer, deve ter sido uma aparição: terno, gravata, um enorme gravador pré-cassete Philips à mão

“Comecei como repórter e me pagavam 100 cruzeiros em vales semanais (o salário-mínimo era de CR$ 150,00), e sem carteira assinada.” Ele já tinha recebido, antes, o primeiro dinheiro como jornalista, dez cruzeiros, com a venda de uma entrevista com o diretor do Serviço de Proteção ao Índio, “O que há com nossos índios”. Queria guardar a nota com a foto de Getúlio Vargas como lembrança. Mas a gastou no bar Britz, o preferido dos jornalistas de Vitória, na época.

Rosental também teve sorte em sua ascensão. Em busca de um disco-voador, em Marataízes, com um grupo d’O Diário, que afinal não passava de um balão meteorológico, ele encontrou Carlos Imperial, conhecido produtor artístico. “Pedi uma entrevista e ele me convidou para ficar na casa dele, porque estava dando uma festa que tinha, entre os convidados, o tricampeão mundial Tostão, saído de uma operação em Houston”. Outro exemplo de sorte, anos depois, em 1996: só um brasileiro deve ter visto na revista The Economist o anúncio classificado de um concurso na Universidade do Texas. Foi ele. O resto dependeu, é claro, de competência: disputou com 200 candidatos e conquistou a cátedra John S. e James L. Knight. “O segundo presidente daqui gostava muito dessa história. Numa festa de Natal, ele me pediu: -Conta aí como você veio parar aqui…” O próprio Rosental considera “sorte muito grande” ter sido convidado para dar aula na Universidade Federal Fluminense, aos 21 anos. “Eu era mais jovem que meus 55 alunos”. Um ano depois, acumulou o cargo de professor na Universidade Gama Filho. E ele ainda estudava jornalismo.

Rosental zanzou pelas rádios Tupi e Nacional, ao voltar de Vitória para o Rio, até que se fixou no Jornal do Brasil, o seu sonho desde sempre, em 1973 e até 1995, com uma interrupção de um ano em que foi editor-assistente da revista Veja.  A carreira de correspondente internacional começou em 1979, quando foi fazer freelance para a IstoÉ e o Jornal do Brasil em Madri, mas o JB o contratou como correspondente em Buenos Aires, em seguida para o México e as guerras da América Central — e, depois de um segundo período em Buenos Aires e um ano em Harvard, finalmente, o JB o mandou para Washington. Nessa época os colegas correspondentes já o conheciam como Rosentelex, pela facilidade com que dedilhava seus textos no telex, plugado com a redação, enquanto a maioria dos repórteres datilografava nos quartos de hotéis e depois entregava os originais no correio, ou em agências de notícias, ou os lia por telefone para cabines em seus jornais, soletrando palavras.

“Em 1988, eu tive meu momento Aha!” — lembra Rosentelex na transição para Rosentalcom. Foi num seminário do MIT Media Lab em que aprendeu o que estava por vir com a revolução digital. O mundo começou a mudar. E Rosental foi com ele, com a audácia de sempre se atirar nos alvos de sua intuição. É aprender fazendo. Ele cita o poeta andaluz don Antonio Machado Ruiz: “Caminante no hay camino, se hace camino al andar”.

Hoje, jornal de papel ele só lê um, regularmente: o New York Times de domingo. Para se manter informado, bastam-lhe as newsletters, “um grande fenômeno”. Elas superam “um dos grandes problemas do jornalismo online — o saco sem fundo de um fluxo interminável”. Do Brasil ele lê o Meio, lançado pelo jornalista Pedro Dória, que elogia muito; e o Poder Drive e o Poder360, do jornalista Fernando Rodrigues, a quem ele mandou uma mensagem cinco minutos depois de saber que a Folha de S. Paulo o havia demitido: “Foi a mão de Deus”, escreveu. É que “ele estava totalmente equipado para criar a um site para cobertura de Brasília similar a um de sucesso nos EUA, o Político. “E ele fez melhor do que eu faria”, em termos estratégicos, ao lançar primeiro uma newsletter paga e depois o site aberto. No seu cardápio matinal, Rosentalcom inclui ainda a Nexo, “muito boa também”. No final da tarde em Austin, já noite no Brasil, ele assiste o Jornal Nacional, pela Globo Internacional: “Eu acho que o (William) Bonner tem feito um trabalho excelente”.

Quando foi para os EUA, Rosental prometeu à mulher, Cláudia, que não ficariam mais do que quatro anos. Os quatro filhos do casal se tornaram adultos, se formaram em universidades americanas, e 25 anos se passaram. Ele vai completar 70 anos em dezembro. Tem “tenure”, ou estabilidade, o que lhe dá mais vantagem que os ministros do STF: não pode ser demitido e a universidade não lhe fixa prazo algum para se aposentar. “Um professor daqui, hoje com 99 anos e ainda na ativa, ganhou o Prêmio Nobel em 2019, aos 97. Ele criou a bateria que permitiu a popularização dos celulares e recentemente criou a bateria que permitirá a popularização dos carros elétricos. O professor John Foster Dulles, que o Elio Gaspari chama de O Primeiro Brasilianista, morreu aos 95 anos de idade, quando preparava as aulas para mais um semestre na nossa universidade”.

Rosental é um workaholic,um trabalhador compulsivo. Poderia trabalhar sete meses e meio por ano, indo à universidade duas vezes por semana. Mas não: ele se dedica muito mais, e até se cria funções extras. Uma delas é o Knight Center, que ele diz ser um labor of love — um trabalho de amor, “uma forma de ajudar meus colegas jornalistas na transição digital”. Outro é participação em projetos jornalísticos, como o Texas Tribune, jornal digital sem fins lucrativos, e que se tornou um grande sucesso. “Faz anos que vou a conferências de jornalismo mundo afora e ouço o Texas Tribune ser citado como um exemplo a seguir”. Ele ainda faz parte de 15 Conselhos Administrativos e Conselhos Consultivos importantes, entre eles o American Journalism Project, Nieman Foundation, na Universidade de Harvard, e o Conselho Reitor da fundação criada por Gabriel Garcia Marquez, que dá os Prêmios Gabo de Jornalismo. É também o presidente do conselho da Universidade de Columbia, que concede o Maria Moors Cabot, o prêmio de jornalismo internacional mais antigo do mundo.

O repórter Rosentelex foi sempre furão. Agora, ele dá furos no universo acadêmico, onde se coloca como um “repórter infiltrado”. Chamam-no de “doutor”, e ele corrige: “Não sou do doctorland, mas do journalismland”, um “evangelizador digital”. Ele começou a ensinar jornalismo online quando tinha que explicar aos alunos, primeiro, o que era internet. Hoje, todos são “jornalistas” — tuiteiros, blogueiros, youtubers , publicam no Facebook, no Instagram e participam de infindáveis listas no WhatsApp, e daí o naufrágio numa perigosa cacofonia, um ecossistema fértil para fakenews e formação de tribos virtuais, um fenômeno que em inglês tem um nome, homophily, “a tendência a se relacionar apenas com pessoas que pensam como você”. É a infodemia, a infoxicação. Por essa confusão toda, Bolsonaro tem uma live toda quinta-feira, e o presidente de El Salvador, candidato a ditador, diz que o jornalismo não precisa existir mais. Donald Trump tinha 80 milhões de seguidores no Twitter, 30 milhões no Facebook e 20 milhões no Instagram. A vacina para essa nova pandemia é a alfabetização jornalística, a explicação, para a população, qual a diferença entre jornalismo e o que parece ser jornalismo. Rosentalcom inverteu a frase “meios de massa” para “massa de meios”. De um sistema mídia-cêntrico para outro, “eu-cêntrico”. A pós-cacofonia poderá até valorizar o trabalho jornalístico, realçando a busca da verdade e baseado em princípios éticos e deontológicos, como está demonstrando a cobertura da Covid-19 em alguns jornais: “O jornalismo está salvando vidas”.

O jornal impresso se tornou subproduto do digital, mas muitos estão afundando devido à ruptura de seus modelos de negócio.

Exceção dos três grandes jornais dos EUA: o New York Times, com a maior redação de sua história, 1.700 jornalistas, e 8 milhões de assinantes em sua plataforma digital; e o Washington Post e o Wall Street Journal, que bombam com o paywall, uma porta que se abre aos que pagam assinatura.

“Mas os paywalls não são uma solução mágica que serve para todos”, avisa Rosentalcom. “Podem, sim, ser parte da solução”. Cerca de 2 mil jornais fecharam nos últimos 15 anos, nos EUA, principalmente os locais. Mas brotam, atualmente, por toda parte, novos modelos de empresas jornalísticas nativas digitais, incluindo muitas sem fins lucrativos. Como membro do Conselho de Diretores do American Journalism Project, Rosental participa de um esforço de 50 milhões de dólares para ajudar jornalistas a criar jornalismo local sem fins de lucro. “É muito simples. Você forma uma organização jornalística como se fosse uma empresa, só que ela não tem donos para receber eventuais lucros. Se gastarmos menos do que faturamos, chamamos o que sobra de superávit e, em vez de usá-lo para distribuir dividendos aos acionistas, o reinvestimos na operação ou formamos um fundo de reserva para os períodos de vacas magras”.

Para Rosental, “entramos numa outra Era Gutenberg e estamos num momento de ruptura e de transição. Não dá mais para continuar fazendo jornais do mesmo jeito”. Ele receitou, numa

entrevista recente: “Precisamos, todos, fazer uma urgente autocrítica. E a primeira reflexão nos leva a depor as armas da arrogância e assumir a batalha da humildade. A comunicação, na família, nas relações sociais e no jornalismo, não é mais vertical. O diálogo é uma realidade cultural. Os oráculos morreram. É preciso ouvir o leitor. Com respeito. Com interesse real, não como simples jogada do marketing. O leitor não pode ser tratado como um intruso.”

Ao leitor informo, seguindo a recomendação de Rosentalcom, que o fim, aqui, é determinado pelo espaço. Fim.

Verdade? Mentira?

No telão, quatro Barack Obama, lado a lado, falam simultaneamente. Aí o gênio Supasorn Suwajanakon pergunta à plateia:

– Qual deles é o verdadeiro?

– Nenhum – ele próprio responde.

Se uma foto vale mil palavras, quantas valeria um vídeo? Na campanha eleitoral para o governo de São Paulo alguém produziu um vídeo em que João Dória aparecia numa cama com várias mulheres. Mas o sultão no harém era tão mal feito que logo desapareceu. 

Barack Obama estrela um outro vídeo em que mostra o momento em que já não é mais ele falando o que está dizendo. Então, adverte:

-Estamos entrando uma era em que nossos inimigos podem fazer qualquer um dizer qualquer coisa em qualquer momento. 

O gênio do Google Brain, com esse nome impronunciável, Supasorn Suwajanakon, teria nascido onde? Parece indiano, país avançado em tecnologia. Hoje, ele é palestrante da Vistec, um novo instituto de pesquisa em Rayong, na Tailândia. Diz que podemos chamá-lo de “Aek”, obrigado. Seria tailandês? Googlei sem tempo, quase estourando o deadline. Depois de percorrer jornais e sites brasileiros e internacionais que falaram dele e exaltaram seu currículo, desisti. Já tinha o bastante para mais um dos motivos do declínio de credibilidade da mídia: as notícias incompletas, descaso com a curiosidade dos leitores, ouvintes ou telespectadores. Quantas vezes na imprensa lemos sobre um jogo de futebol em que falta o essencial: o resultado?

Temos aqui o futuro, o deepfake, e o presente/passado do jornalismo, a falta de informações nas notícias, que colaboram para o estado de desconfiança que paira sobre toda a mídia.

Mas não só.

“Califórnia institui a sharia” (a lei islâmica).

NADA É REAL

“Ex-presidente Bill Clinton se tornou assassino em série”. 

“Michelle Obama está realmente namorando Bruce Springsteen?”

“Fazendeiro de Iowa afirma que Bill Clinton fez sexo com vaca durante Festa da Cocaína”.

Impressionante: seis milhões de pessoas acreditam nestas manchetes do site America’s Last Line of Defense (A última linha de defesa da América), apesar de avisadas, 14 vezes, que “Nada nesta página é real”. Mas para a audiência que lembra a “Velhinha de Taubaté”, do escritor Luís Fernando Veríssimo, tudo é factual. O incrível, repassado, viraliza. E Christopher Blair, 46 anos, embolsa 15 mil dólares em publicidade por mês. Sua ideia original era fazer um site de humor, como a Falha de São Paulo. 

“Não importa o quanto racista, intolerante e ofensivo, ou tão óbvio que seja fake, os visitantes voltam sempre” – disse Blair ao jornal The Washington Post em novembro. Em sua página do Facebook, ele pergunta: “Qual o limite? Há um ponto em que as pessoas, descobrindo que estão comendo lixo, voltarão a realidade?”

Sobre a mesa de Blair há uma frase definidora: “Vivemos numa idiocracia”.

O Post foi ver o outro lado. Encontrou a senhora Shirley Chapian, 76 anos, em Pahrump, Nevada, diante de uma petição para impedir a lei da sharia na Califórnia, “antes que seja tarde”, na tela do computador. Ela clicou: “Like”. Aí surgiu outro pedido: “Compartilhe para ACABAR com a atual invasão de migrantes”. Ela: “Share”.

A senhora Chapian só sabe do mundo através do monitor de seu computador. Viveu na Europa, San Francisco, New York e Miami, foi uma das primeiras mulheres a entrar para a National Organization for Women, onde batalhou pela equiparação aos salários de homens. Parou de assistir os noticiários de TV ao constatar quão distantes ficavam em relação ao que lia online. “Onde estava a notícia de que (o bilionário doador) George Soros foi um nazista assumido?” 

Ela diz que não é do tipo que produz teorias conspiratórias, “mas…”

TRUMP, UM VÍRUS

Quando o presidente Donald Trump tuíta, 56 milhões de seguidores o leem. Ele não precisa da imprensa, a que chama de “Inimigo do Povo”. As notícias que o desmentem ou contradizem são rotuladas de fake-news, duas palavras que não vão bem juntas. Notícia é o relato de um acontecimento real. E Fake, falso. Um exemplo de fake-news mundial foi a informação divulgada pelos Estados Unidos, com apoio do Reino Unido, de que o Iraque de Saddam Hussein tinha um arsenal de armas de destruição de massa, base para a guerra de 2003. Já se passaram 15 anos, e nada: deve ter sido apenas uma miragem no deserto.

O presidente eleito Jair Bolsonaro também tuíta, dispensando a mediação dos meios de comunicação. Proíbe a entrada da TV Brasil, do próprio governo, quando recebe as demais tevês para entrevistas. E anunciou que irá fechá-la. Ameaçou o jornal Folha de S. Paulo com o corte de propaganda oficial. Com os filhos, taxa notícias de fake-news, sem contribuir para que se tornem truth-news. Já o chamam de Trump Tropical, embora tenha recuado de peitar a China e mudar a embaixada brasileira de Tel-Aviv para Jerusalém, seguindo os passos do Trump do Norte.

A revista americana The Atlantic diagnosticou: Trump é um vírus. A mídia, um hospedeiro, que o distribui, causando infecção. Dilema 1: não se pode deixar de noticiar o que diz um presidente. Dilema 2: a 26 mentiras ou falsidades por dia, o presidente já chegou a 5 mil desde que tomou posse. Dilema 3: um vírus sempre mata o hospedeiro. Dilema 4: ainda não há um antivírus efetivo. 

“Crianças mentem dizendo que escovaram dentes; políticos esticam verdades no calor da campanha; repórteres já foram flagrados mentindo; escritores, também; empresas; esposas e, naturalmente, o governo”, escreveu o professor de filosofia da Universidade de New England e autor do livro “Porque Mentimos”, David Livingstone. Mentiras estão cada vez mais tão comuns como a verdade. Monótono ouvir, entre acusados da Lava Jato, que nada sabem, ou que provarão nos autos que estão com a verdade.

A própria mídia contribui também para seu crescente descrédito. Como jornais importantes permitem a publicação de matérias delicadas baseadas em fontes anônimas? Ou fonte alguma? Como um repórter se torna mais importante que a notícia? Por que editores permitem a coleta de dados pela internet? Muita demissão, pelo decréscimo de circulação e êxodo dos anunciantes, sobrecarrega os sobreviventes, pressionados por deadlines cada vez mais apertados. Acabou o ménage à trois entre jornais, publicidade e leitores.

Jornais centenários estão competindo com as notícias circulando velozmente na internet, acessada por bilhões de pessoas. O WhatsApp já passou dos 800 milhões de usuários. Twitter, 300 milhões (estimativa, porque a empresa não divulga números). “Todos se tornaram jornalistas”, proclamou o professor da Universidade de Colúmbia, Clay Shirk, em seu livro Here Comes Everybody. A verdade acabou sufocada por tantos tuiteiros. No Oriente Médio, israelenses e palestinos postam versões opostas, aberta uma outra frente de guerra. Cartas aos jornais incluem spam que exalam ódio. Fotos de cataclismos do cinema surgem como se fossem fotos do novo furacão em Miami. 

SOLUÇÃO À VISTA?

Quem mantiver a credibilidade na Torre de Babel da mídia poderá ter seu futuro assegurado. OK, mas não será tão simples assim. Ser independente é servir ao público, não ao lucro. Exemplos são o ProPublica, americano; El Diario, espanhol; OjoPublico, peruano; Connectas e La Silla Vacia, colombianos; Animal Político, mexicano; e Nexo, brasileiro. Há mais no Brasil, como Mídia Ninja, Jornalistas Livres e Nós, Mulheres da Periferia, mas eles militam para minorias. Atender ao público, não aos anúncios ou grupos, o princípio da sobrevivência,  deverá secar os investimentos no jornalismo tradicional que não migrar para o mundo da multimídia, interatividade e múlti plataforma, exceção aos grandes internacionais – The New York Times, New Yorker, The Economist, The Washington Post e os principais europeus. Várias organizações já existem para a defesa dos independentes.

O jornal desse novo tempo que faz mais sucesso é o holandês De Correspondent, de 2013, com 56 mil leitores que pagam 63 dólares por ano, gerando o suficiente para manter 21 jornalistas fulltime e 75 freelancers. Com a bênção do professor Jay Rosen, da Universidade de Colúmbia, em New York, uma edição norte-americana já está em gestação, com o apoio de 515 mil dólares da Knight Foundation e do Democracy Fund. 

Aclamado “embaixador” do The Correspondent nos Estados Unidos, Jay Rosen explicou o que ele chama de “otimização para a confiança” – o único antidoto para a perda de credibilidade. Nada de anúncios, nem caça-cliques. “Se você não está pagando pelo produto, você é o produto”, diz ele. Não há nenhum grupo a ser atingido ou a satisfazer. Nenhuma informação sobre o assinante vai para terceiros, nem mesmo para alguns serviços usados, como YouTube, Vimeo e Sound Cloud. Liberdade nas 24 horas do ciclo de notícias. Uma importante questão: como tratar o noticiário que está em todos os jornais? A resposta é interessante: “Não o tempo, mas o clima”. Quer dizer que a redação pode ignorar os flashes do dia se focar nos padrões que os produzem. Ninguém cobrará pontos de vista aos editores. Por fim, o fundamental: deverá haver uma rica interação com os leitores — os donos do futuro jornalismo com credibilidade.

http://portalimprensa.com.br/noticias/ultimas_noticias/81418/perdemos+a+credibilidade+2

Galeria

Todas as capas do Presidente

 

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No The Wall Street Journal, o casal Bolsonaro, desfilando de Rolls Royce, foi a foto do alto da primeira página. No El Observador, uruguaio, a foto do presidente agitando a bandeira do Brasil no Parlatório virou pôster, com o título: Entre el miedo y la esperanza. La Repubblica, italiano, texto-legenda para o desfile em carro aberto: Bolsonaro no trono. E Trump celebra. Em Portugal, o destaque era esperado. No Público: A ultradireita chegou ao Planalto. E no Jornal de Notícias: Vamos unir o povo. No The New York Times é preciso procurar o Brazil na capa. Mas lá está ele, no pé da página, uma notinha com foto. Já no The Washington Post, com uma foto 3×4 de Bolsonaro, é a manchete: Populista toma o leme no Brasil. Manchete também do La Nacion, de los hermanos argentinos: Bolsonaro prometió orden, combatir la corrupción y liberar a Brasil del socialismo. No Clarín, Bolsonaro roda a bandeira: vai liberar a Brasil de la corrupción y el yugo ideológico. O Financial Times, com Bolsonaro fazendo continência, e Michelle acenando, lembra que o presidente prometeu lutar contra a corrupção. É a foto central do espanhol El País: Bolsonaro jura el cargo: Brasil y Dios por encima de todo. O ADN, paraguaio, lembra que o Brasil está agora MÁS CERCA DE EE.UU E ISRAEL. A surpresa é israelense. Nada na capa do Haaretz. E no Jerusalem Post tem sim a foto pequena de Netanyahu e Bolsonaro, mas o título é sobre o secretário de Estado americano, Mike Pompeo, garantindo que a retirada dos Estados Unidos da Síria, não trará consequências para Israel. Os jornais de Cuba, Venezuela e Nicarágua, países convidados desconvidados, não deram nada em suas capas.

 

 

Um Muro no Natal Americano

Trump “Noel” paralisou o governo americano, parcialmente, nesta véspera de Natal, porque não ganhou o muro na fronteira com o México que tanto quer há dois anos. 

Mais de 420 mil funcionários públicos federais vão trabalhar sem receber e nove departamentos fecharam ao primeiro minuto deste sábado 22, entre eles o de Segurança Interna, Justiça, Interior, Transporte, Comércio e de Relações Exteriores. Parques nacionais e a Estátua da Liberdade estão fechados e não serão abertos nem nos feriados de fim de ano, se o impasse entre Casa Branca e Congresso perdurar.  Também não há emissão de passaportes.  

Wall street amargou a perda de mais 415 pontos na sexta-feira e a Nasdaq, 20% , no fim da semana considerada histórica e decisiva para a administração Trump. 

O chefe do Pentágono, general Jim Mattis, apelidado de “Cachorro Louco”, renunciou na quinta-feira, depois  de anunciada o que nem ele sabia: a retirada dos dois mil soldados americanos da Síria, expondo parceiros curdos a ataques da Turquia, que os consideram terroristas, e permitindo a expansão iraniana em território sírio.  

Na carta em que entrega o cargo em fevereiro, o general Mattis induz à conclusão de que Trump não age em função do interesse nacional, mas pessoal. O exemplo logo lembrado pela imprensa foi o da Trump Tower que ele planejava levantar em Moscou, semelhante à de New York, mas que precisava do aval do presidente russo Vladimir Putin, a quem daria, em troca, uma das milionárias suítes. Seria apenas um negócio, não fosse o incorporador um candidato à Presidência dos Estados Unidos que nada contou aos eleitores em toda a longa campanha eleitoral, e era obrigado a fazê-lo por lei. 

“Ele traiu a América”,  deu um jornal. 

Para a abrupta retirada da Síria, que surpreendeu os aliados americanos no Oriente Médio, lembra-se que a decisão foi anunciada após uma conversa telefônica com o presidente turco Recep Erdogan, que ameaça com revelações sobre  a execução do jornalista Jamal Khashoggi, em Istambul, o príncipe herdeiro saudita Bin Salman, tido por mandante e blindado pela Casa Branca.  

O muro na fronteira seria pago pelo México, quando anunciado nos comícios eleitorais. Mas agora, véspera em que a Câmara terá maioria Democrata, a partir de 3 de janeiro, a conta passou para os contribuintes — e mais: ou os 5 bilhões de dólares para iniciar a obra estivessem no orçamento provisório para que o governo funcione até  8 de fevereiro, ou Trump não o assinaria, provocando, como afinal provocou, o fechamento parcial do governo. Os Republicanos bem que tentaram pôr o muro de passa-moleque na legislação de financiamento quebra-galho do governo. Mas aí encontraram um muro intransponível dos Democratas.  

O presidente chegou a dizer que teria orgulho em assumir a responsabilidade por parar o país. Porém, ele não demorou a culpar os Democratas. Num dos milhares de tuítes disparados sobre o imbróglio, alguém perguntou: “Que tal fechar o governo e não abrir nunca mais?” O senador Charles Schumer (D-New York) assegurou a Trump ao falar no Senado: “Você não vai ter seu muro. Não o terá hoje, nem na semana que vem e muito menos em janeiro, quando os Democratas tomarão conta da Câmara”.

Vou embora do Facebook

Estou suspenso por seis dias do Facebook. Fui “punido” porque postei um álbum de fotos preciosas com habitantes dos mais remotos rincões do planeta. Alguns são índios. Esta coleção de culturas remotas é de um fotógrafo italiano que a expôs em museus e galerias.

O problema para o Facebook são os índios. Deveriam estar vestidos. Censurado, reclamei. Recebi um pedido de desculpas no final do dia. Ao acordar, porém, estava de novo proibido de postar por seis dias. Reclamei de novo. Outro pedido de desculpas, seguido do aviso de que continuava cumprindo a pena do Facebook.

Foto do fotógrafo italiano Mattia Passarini

Não é a primeira vez que me censuram. Houve outra quando postei um novo livro sobre Salvador Dali. Então, decidi: basta. Lamento pelos cinco mil amigos que fiz postando informações sobre atualidade no mundo, design, capas criativas de jornais e revistas internacionais, curiosidades ou depoimentos pessoais. Mudo para este blog, que já mantenho desde que decidi tirar do baú os textos de que mais gosto entre a cobertura que fiz como correspondente em Israel, Estados Unidos e França, e ainda como enviado especial a locais de conflitos, furacões, eleições e tragédias.

Mas quero acrescentar que o Facebook, que se dá ao direito de censurar, está sendo de novo acusado, justamente hoje, de ter compartilhado o meu, o seu, o nosso perfil, multiplicado por milhões de usuários em todo o mundo. Isso pode? É crime! A privacidade exposta sem autorização é muito mais grave que a foto de uma índia seminua em Papua Guiné. Neste ano de 2018 já no fim, cada mês, e em alguns meses, cada semana, o Facebook foi denunciado por abrir seus arquivos a empresas gigantes de tecnologia. O fundador e CEO Mark Zuckerberg está gastando bilhões tentando corrigir as falhas flagradas. Caiu a publicidade. Caíram as ações em 35%. Respeitados e célebres executivos estão abandonando bruscamente o Facebook e as empresas que a orbitam, como Instagram, Oculus e WhatsApp.

Ao todo, 30 milhões de contas do Facebook tiveram a privacidade violada. Mas quem paga o pato somos nós, o baixo clero, com nossos inocentes posts que exibem alguma nudez. Lembro a censura que veio com o golpe de 1964 no Brasil. Um dia recebemos a instrução de que poderíamos publicar apenas um dos seios de uma mulher desnuda, pulando o carnaval ou desfilando numa escola de samba. O Facebook está evoluindo para o retrocesso.

Paz e Neve em Jericó

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Jericó – A festa foi já uma comemoração pelo nascimento de um estado palestino: Biladi, Biladi, cantava a multidão embandeirada com as cores verde, branca, vermelho e preta, a bandeira palestina antes proibida por Israel. Biladi, “nosso país, nossa terra”, continuava a canção: “Quero dar a você, Biladi, todo meu amor e meus sentimentos”.

  O fundo era de tambores na cidade que Josué derrubou com trombetas de chifre de carneiro. trombetasJericó, a mais antiga do mundo, e a primeira oficialmente de uma futura Palestina, teve seu dia de carnaval. Caminhões abriam espaço numa multidão delirante como se fossem trios elétricos baianos. Bandas juvenis marchavam. Recebia-se a imprensa, na entrada da praça principal, com a saudação:

  “Benvindo ao meu país”.

  A população de Jericó ficou tão feliz com a perspectiva de paz que já arranjou nada menos que cinco casas oficiais para “o presidente Yasser Arafat”. Alguns mais emocionados não conseguiram manter-se parados, mesmo dançando, e subiram e desceram com seus carros enfeitados de bandeiras e retratos de Arafat a estrada para Jerusalém.

   Uma façanha: a estrada vai de 250 metros abaixo do nível do mar para 820 metros acima em apenas 20 minutos. Sobe-se do lugar mais baixo do mundo para a maior altitude espiritual da Terra Santa, do sufoco de um oásis para o frescor do Monte das Oliveiras. Não encontraram obstáculos pelo caminho. E buzinaram muito em Jerusalém. A polícia os olhou à distância. No final do dia, israelenses contagiados içaram também suas bandeiras na cidade. E a paz de Washington se refletiu pela primeira vez realmente entre israelenses e palestinos.

  Uma bandeira palestina já tremulava em Jerusalém desde o começo da tarde, na casa do negociador Faissal Husseini, a Oriental House. Depois outras foram aparecendo nos carros, e no final do dia eram o cenário. Os retratos de Arafat também se multiplicaram. Mesmo o inacreditável podia ser ontem fotografado: soldados israelenses posando diante de bandeiras palestinas. Não houve choques. A polícia até desviou o trânsito para dar passagem a uma passeata iniciada diante da Porta de Damasco, na velha Jerusalém. E de cima de um prédio em Jericó outros soldados fotografavam a alegria da multidão dançando na praça.

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Na Casa Branca

  Nenhum telão foi produzido para que o povo acompanhasse o aperto de mãos entre Rabin e Arafat, transmitido ao vivo pela TV israelense. Às 5 horas em ponto, um orador subiu num palanque, e puxou o “Biladi, Biladi”. A assinatura dos primeiros acordos só ocorreu 45 minutos depois, mas ali ninguém ficou sabendo. “Todos meus sonhos estão aqui”, disse Amim Shooman.

  O orador incendiava a festa com notícias quentes. Ele gritou, por exemplo, que “o presidente Arafat” ia pedir ao primeiro-ministro Rabin, na Casa Branca, a libertação de todos os prisioneiros palestinos. Depois, ele prometeu uma mensagem do próprio Arafat para dentro de uma hora. O termômetro subiu mais no oásis, onde as tâmaras e o suco de laranja são inesquecíveis. Vez em quando, ele fazia um anúncio, tipo “Gaza está com Arafat”, ou “toda a Cisjordânia festeja”.

  O estudante Ihab Dawich, com 18 anos, nunca viveu em Jericó sob o domínio de um país árabe, só israelense. “Estou muito feliz”, ele contou. Uma criança, pelo microfone, lembrou aos outros jovens da festa como Israel ocupou a Cisjordânia em 1967, durante a Guerra dos Seis Dias. Não havia animosidade contra Israel.

   Ao ser sobrevoada por um helicóptero israelense, com fotógrafos, a multidão mostrou o V da vitória e levantou bandeiras. Só não precisava nevar. Mas os militantes do Fatah, o movimento de Arafat dentro da OLP, acharam que ficaria bonito, se nevasse. Então, do alto de um prédio foram despejadas gotas de sabão que lambuzaram lentes de televisão e cabelos dos repórteres, levadas para o lado por um ventilador, e não para baixo. A paz será como essa neve no deserto?

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Os três Nobel da Paz (foto Operamundi)

Uma breve história dos mercenários

Grupo de mercenários na África

São mercenários. Foram soldados, veteranos de guerras que continuam na luta, agora por dinheiro, contratados por empresas privadas que os alugam para missões especiais em vários países, como golpes de estado, proteção a multinacionais em regiões hostis, a navios em águas com piratas e a bilionários inseguros. Até grupos terroristas os contratam.

A atriz e ex-Embaixadora da Boa Vontade das Nações Unidas, Mia Farrow (foto), planejou enviar mercenários para pôr fim ao genocídio em Darfur, no Sudão, em 2008, mas não concluiu o acordo que negociava com a empresa americana Blackwater, e afinal limitou-se a arrecadar dinheiro para um socorro humanitário.

O aluguel de mercenários é um negócio que cresce muito no mundo. Duas empresas, a americana DynCorp International, e a britânica Armor Group, têm até ações nas bolsas de Wall Street e da London Stock Exchange. Difícil estimar quanto vale esse mercado, certamente bilionário, porque as transações orbitam paraísos fiscais, ou usam criptomoedas — e muitas vezes os pagamentos são em ouro ou diamantes, como nos países africanos em que reina hoje uma poderosa contratante russa de mercenários, a Wagner.

Desde o governo Bill Clinton a Casa Branca tem preferido os mercenários aos próprios soldados. Entre 2007 e 2012, o Departamento de Defesa gastou 160 bilhões de dólares com exércitos privados.

O professor de Estratégia da Faculdade Internacional de Assuntos de Segurança, do Departamento de Defesa dos EUA, Sean McFate, ex-paraquedista e ex-chefe de uma empresa privada de mercenários na África (foto), explica que um batalhão de infantaria custa 110 milhões de dólares por ano, enquanto o equivalente alugado sai por 99 milhões de dólares. Com uma diferença: em tempos de paz os soldados continuam recebendo o soldo, mas os mercenários, não.

O grupo sul-africano Executive Outcomes, já extinto, recebeu 1,2 milhão de dólares por mês para acabar com uma rebelião em Serra Leoa, na África Ocidental, e o conseguiu, enquanto a ONU pagava 47 milhões de dólares para uma força de paz inoperante. Teve dois mil combatentes quando treinava as forças armadas de Angola para encerrar décadas de conflito com o grupo guerrilheiro angolano UNITA. Implodiu por corrupção, em 1993.

Exército de aluguel tem outra vantagem: os mortos não vão ensacados para os países que os contrataram. São estrangeiros. Governos os ignoram e jornalistas não os encontram para entrevistas, “mídia-fóbicos” e clandestinos. Não existem para as Convenções de Genebra, que tratam das leis internacionais de Direito Humanitário. O silêncio beneficia a todos e mantém o negócio atrativo e em ascensão. Os americanos só souberam que havia mais mercenários na guerra do Iraque, 53 mil, do que soldados, 35 mil, quando um grupo da empresa Blackwater matou 17 civis na praça Nisour, em Bagdá — um massacre que escandalizou o mundo. Soldados de aluguel, em inglês, são chamados de “soldier of fortune”, “hired gun” e “contractors”.

Guerras na Crimeia, em dois tempos distintos.

Desde a tomada da Criméia pela Rússia, em 2014, mercenários de 50 países se enfrentam na Ucrânia. No terceiro dia da atual invasão russa, o chanceler ucraniano Dmytro Kuleba publicou um apelo a voluntários no Twitter. Em pouquíssimo tempo, cerca de 20 mil estavam inscritos para a “Legião Internacional de Defesa Territorial da Ucrânia”, a maioria da Europa, com mil alemães e 200 croatas, e Estados Unidos, 500 da República de Belarus, alguns japoneses e até brasileiros.

Voluntários, não mercenários, eles têm que pagar as próprias passagens. Os veteranos de guerras foram direto para o front. Outros, sem nenhuma experiência, para campos de treinamento, ou para tarefas logísticas e funções civis de ucranianos mobilizados para o exército. Como não falam a língua, são separados em grupos em que predomina o inglês, o francês, o espanhol, russo e alemão.

Um dos brasileiros que se inscreveram, Tiago Rossi, instrutor de tiro em Maringá, no Paraná, disse a agência pública de radiodifusão alemã Deutsche Welle que “estava a caminho” e que atuaria como franco-atirador. Em grupos de WhattsApp e Telegram muitos brasileiros lamentam não ter dinheiro para a viagem, algo em torno de 7 mil reais até a Polônia, e pedem doações. Alguns são até qualificados, como ex-soldados da força de paz no Haiti, ou ex-policiais militares.

Do lado da Rússia não foi preciso anúncio para reforçar as tropas na Ucrânia. O presidente Vladimir Putin pediu a seu ministro da Defesa, Sergei Shoigu, em reunião do Conselho de Segurança transmitida ao vivo por TV, em 11 de março, que fosse encontrar “no meio do caminho aqueles que estão querendo ajuda para chegar à frente dos combates”. Chamou-os de “voluntários”, mas, na verdade, seriam mercenários, já que pagos. O “Movimento de Libertação da Ucrânia” foi formado por veteranos da guerra na Síria, os sírios que defenderam o presidente Bashar al-Assad contra rebeldes, mais os fiéis do Estado Islâmico unidos a iranianos e soldados do Hezbollah. Talvez por isso várias cidades ucranianas ficaram muito parecidas com as devastadas Idlib, Aleppo e Douma, na Síria.

A Rússia também conta com um poderoso grupo de mercenários, Wagner, ligado a militares russos e ao oligarca Yevgeny Prigozhin, amigo de Putin procurado pelo FBI por interferir na eleição presidencial de 2016 para a Casa Branca. Nele há chechenos, sírios e líbios — uma tropa de 6 mil combatentes. Tornou-se conhecido quando soldados franceses deixaram o Mali, o sétimo maior país africano, em 2020. Em Bamako, a capital, foi recebido com cartazes “Amamos Wagner” e “Obrigado, Wagner”, e fotos do maestro e compositor Richard Wagner coladas nos muros. O nome teria sido inspirado no apelido da artilharia da era soviética: “a orquestra”.

Wagner é mais temido do que apreciado. Na República Centro-Africana, seus homens combateram uma rebelião com massacres, tortura e sequestros, segundo relatório da ONU. Em troca, obtiveram licenças para exploração de minas de ouro e diamantes. Na Líbia, eles cometeram execuções sumárias em apoio a chefes tribais que ambicionavam o governo. No Sudão, sufocaram, violentamente, as manifestações contra o ditador Omar Hassan al-Bashir.

A história dos mercenários começa na Bíblia. Em 1Crônicas 19:7 está descrito: “Alugaram trinta e dois mil carros e seus condutores, contrataram o rei de Maaca com suas tropas, o qual veio e acampou perto de Medeba, e os amonitas foram convocados de suas cidades e partiram para a batalha.”

E mais, em 2Reis 7:6: “Pois o Senhor tinha feito os arameus ouvirem o ruído de um grande exército com cavalos e carros de guerra, de modo que disseram uns aos outros: “­Ouçam, o rei de Israel contratou os reis dos hititas e dos egípcios para nos atacarem!”

O professor Sean McFate lembra os primeiros que se armaram de mercenários depois do Velho Testamento: o Rei Shulgi, de Ur (2029-1982 AC); Xenofonte, militar discípulo de Sócrates, contratou um exército de gregos que batizou de Dez Mil (401-399 AC); Cartago os usou nas Guerras Púnicas contra Roma (264-164 AC), incluindo 60 mil guerreiros de aluguel sob comando de Hannibal. Quando Alexandre o Grande invadiu a Ásia, em 334 AC, acrescentou cinco mil estrangeiros às suas tropas, e enfrentou as forças persas que contavam com 10 mil gregos. Foram mercenários alemães que salvaram Júlio César na batalha de Alésia contra os gauleses, em 52 AC.

Guerras Púnicas

Os mercenários continuaram guerreando por toda a Idade Média. Reis, famílias ricas, a Igreja, Papas — todos os tiveram para defesa da honra, sobrevivência, deus, roubo e vingança. Usou-os até mesmo o filósofo, diplomata e escritor Thomas More para proteger a sua República utópica. Curioso é que, por essa época, os mercenários eram chamados de condottieri, italiano para contractors, o atual nome deles em inglês.

As guerras mudaram no século 17, as armas mais destrutivas e superbatalhas que incluíam até 50 mil combatentes. Os mercenários ainda predominavam, lembra o professor Sean McFate. “O conceito de patriotismo não estava relacionado ao serviço militar. Isso só viria mais tarde, com o crescimento do nacionalismo, Napoleão e a guerra convencional”. Em 1648, com a paz de Vestefália, que encerrou a Guerra dos 30 Anos (1618-1648), líderes de todos os lados resolveram acabar com o mercado livre de mercenários, responsabilizados pela devastação na Europa central. Para os exércitos privados, quanto mais guerras, mais salários. A paz não era um bom negócio. O florentino Nicolau Maquiavel opinava que os condottieri transformavam os guerreiros em animais, e os cidadãos, em covardes.

Aconteceu que os mercenários sem guerra, desempregados, passaram a cercar cidades e a exigir resgate em dinheiro para libertá-las. E, quando partiam, despediam-se: “Até o ano que vem”. A cidade toscana de Siena pagou a extorsão 37 vezes, entre 1342 e 1399. A última participação conhecida de mercenários, até o final do século 20, foi em 1854, na guerra da Crimeia, onde de novo estão lutando, hoje, nos dois lados da invasão russa da Ucrânia.

As Convenções de Genebra I e II, em 1977, baniram a figura do mercenário. E determinaram que ele “não tem o direito de ser um combatente ou prisioneiro de guerra”. Mas aos poucos eles foram voltando, com a queda do Muro de Berlim e o fim da Guerra Fria. O mercado se abriu com conflitos nos Bálcãs, guerras estourando no Mali, Congo, Iêmen, os carteis de drogas na América Latina, Al Qaeda e Estado Islâmico, no Oriente Médio. Os Estados Unidos passaram a contratar exércitos para suas guerras no Iraque e no Afeganistão. Foram 50 mil soldados terceirizados, em 2018, segundo o próprio Departamento de Defesa.

O professor Sean McFate ia buscar seus mercenários entre filipinos, colombianos e sul-africanos que tinham lutado em forças especiais. “São como camisetas, baratas nos países em desenvolvimento. É a globalização da força privada”. Alguns grupos sublocavam tarefas aos nativos dos locais em que trabalhavam, daí formando subgrupos que assumiam o lugar deles quando partiam para outras missões. Assim, hoje, há pequenas empresas privadas em vários países, como a Mister White e Mister Pink, no Afeganistão, herança da empresa britânica ArmorGroup.

Os exércitos privados oferecem pilotos de helicópteros, tanquistas, militares familiarizados com vários sistemas de defesa antiaérea, sabotadores, agentes treinados em extrair prisioneiros, soldados para o deserto ou para florestas — um supermercado de produtos para qualquer missão. O que não existe é mulher mercenária. McFate afirma que nunca encontrou uma sequer.

Mercenários colombianos presos depois do assassinato do presidente do Haiti

A empresa de aluguel de mercenários CTU Security, em Miami, recrutou militares da reserva das forças especiais colombianas, em maio e junho de 2021, e os mandou ao Haiti para proteger alguns dignitários locais. Aos poucos, a missão foi mudando. E em 7 de julho o grupo invadiu a residência do presidente Jovenel Moïse e o matou na cama dormindo com a mulher, Martine, que ficou ferida. Como eram “protetores”, passaram pelos soldados haitianos sem problemas. Depois do assassinato, 18 dos 26 mercenários colombianos foram presos, e outros três, mortos. Um escapou, talvez o comandante: Mario Palacios, 43, que integrou a força Delta de combate aos narcotraficantes na Colômbia. Ele conseguiu entrar na vizinha Jamaica, onde acabou preso por violar leis de imigração. Foi então que aceitou cooperar com o FBI, desvendando a operação para matar o presidente haitiano, em troca de ser deportado para Bogotá. Mas, numa escala no Panamá, o destino dele mudou: voou para a prisão em Miami.

Um dos donos da CTU Security, Arcangel Pretelt, oficial da reserva das forças especiais colombianas, afirmou que os Estados Unidos sabiam que o presidente Moïse seria morto e substituído por um antigo juiz da Corte Suprema do Haiti, Windelle Coq-Thelot. Ele foi desmentido. E desapareceu.

Em 3 de maio de 2020, um grupo de mercenários americanos desembarcou numa praia venezuelana. Missão: matar o presidente Nicolas Maduro. Horas depois, quem não estava morto, estava preso. O fracasso foi assumido por Jordan Goudreau, antigo soldado dos Boinas Verdes dos EUA e chefe da Silvercorp, na Flórida. Inevitável lembrança: a tentativa frustrada de invadir Cuba, em 1961, com o desembarque de exilados cubanos anticastristas na Baía dos Porcos, treinados e dirigidos pela CIA e com apoio das Forças Armadas dos EUA.

Um dos mais famosos mercenários de todos os tempos, “Mad Mike” Hoare morreu ao completar 100 anos, em 2019, em Durban, na África do Sul. Era um soldado britânico que serviu na Índia e em Myanmar durante a segunda Guerra Mundial. Em época de paz, trabalhava como contador, em Londres — mas, ao mesmo tempo, organizava safaris na África, que desbravou em motocicleta, quando buscava a lendária cidade perdida no deserto de Kalahari.

O espírito de aventura e o conhecimento da África o tornaram mercenário. Sua primeira missão, contratado pela CIA, foi sufocar uma rebelião no Congo, considerada uma ameaça pelos Estados Unidos. A imprensa americana o glorificou, embora existissem provas de que ele e seus homens tivessem cometido roubos, estupros, tortura e assassinatos.

“Eu gostaria de ter nascido na época de Sir Francis Drake”, ele disse ao jornal The Washington Post, lembrando o capitão inglês e corsário condecorado pela rainha Isabel I como cavaleiro, em 1581. “Sim, velejando, roubando os espanhóis, e quando trouxesse o butim para a Rainha Elizabeth, ajoelhado, ela me faria um cavaleiro. Me tornaria respeitável — mesmo sendo um ladrão.”

“Mad Mike” era racista: só contratava brancos, e mais de uma vez disse que “os africanos eram animais”. Essa impressão ficaria mais forte ao lutar contra o rebelde congolês Moise Tshombe, em 1961, e ter três de seus mercenários canibalizados. Sua tropa, apelidada de Gansos Selvagens, liquidou as forças da tribo Simba, mais numerosas, mas menos treinadas, e que acreditavam que um feiticeiro as tivesse blindado contra balas. A partir daí, os Gansos ficaram famosos como “Gigantes Brancos”. E recebiam 300 mil dólares por mês de Mobutu Sese Seko, que governou a República Democrática do Congo, antigo Zaire, por 30 anos sangrentos.

Em outro encontro com Simba, em Kisangani, em novembro de 1964, os Gigantes Brancos libertaram 1.600 missionários europeus e americanos feitos reféns.

O ator Richard Burton atuou no papel de um mercenário inspirado em “Mad Mike”, no filme que em inglês tinha o título de Gansos Selvagens, mas que, em português, ficou sendo Selvagens Cães de Guerra.

O filme o tornou mais famoso ainda, lançado em 1978, e coincidiu com sua primeira grande derrota ao tentar derrubar o governo socialista das ilhas Seychelles. Ele e 40 homens disfarçados de jogadores de rúgbi desembarcaram no aeroporto de Mahé, mas um dos fuzis AK-47 que levavam escondidos foi descoberto na alfândega. Houve um tiroteio, com um morto de cada lado, e “Mad Mike” sequestrou um avião da Air Índia na pista e voou cerca de sete mil quilômetros, até Durban, onde ele e os Gansos foram presos.

Condenado a 10 anos de prisão, Mike Hoare serviu três anos, beneficiado por uma anistia presidencial. Mudou de vida, ao sair: foi para a França, onde passou 20 anos estudando uma seita cristã conhecida por Cathars, sobre a qual escreveu um romance histórico. Voltou em 2009 para a África do Sul. Teve cinco filhos em dois casamentos, e oito netos. Quando lhe perguntaram o que o levou a ser mercenário, “Mad Mike” respondeu:

“A mística é inexplicável – a mística sobre o soldado com homens fortes. É algo mais do que apenas soldado por dinheiro. O momento da verdade vem às 3 da manhã em um buraco. Seu amigo foi morto ou ferido, e nenhum dinheiro pode compensar…  Mas há uma alegria indescritível de ser parte de uma unidade bem disciplinada…





SEM PALAVRAS

Cada desenho do artista israelense Yuval Robichek vale mais que mil palavras atribuídas a uma foto. Nem legendas requerem. A fonte de inspiração dele é o cotidiano, relacionamentos, crianças… Vejam esta seleção. Quem quiser mais, Robichek está no instagram e boredpanda. Nota curiosa: não vi desenho algum dele com tema de guerras, tensão — a rotina em Israel.

Lembranças do Golã

Assim estava o Golã em 1968

Em 11 de março de 1982, atendi o telefone, em Tel-Aviv, e era Jânio Quadros. Ele tinha ido conversar com Muamar Kadafi, na Líbia, e na escala em Lisboa, voltando ao Brasil, um diplomata o aconselhou: “Você não pode visitar um país árabe, no Oriente Médio, e não passar por Israel”. Então, aqui estava ele.
Já conhecia o ex-presidente. Tinha sido enviado ao exílio com ele em Corumbá, no Mato Grosso. Eu, repórter; ele, punido. Agora era um reencontro: Jânio queria conhecer as colinas do Golã. E lá fomos nós no meu carro.
Duas horas de viagem, Jânio teve tempo apenas de me falar de Kadafi, antes de cair no sono. Não viu a Galiléia, quase primaveril. Nem o lago Tiberíades. Parei num café para acordá-lo porque já íamos subir para o topo do Golã ocupado por Israel na Guerra dos Seis Dias, em 1967.
Morei um tempo bem perto do Golã, no kibutz Dafna. Fins de semana, amarrava cervejas e as colocava para gelar na corredeira do rio Dan, que descia das geleiras sírio-líbano-israelenses do Monte Hermon. Subimos uns dois mil metros, até um lugarejo chamado Banias. Um córrego passava por baixo do restaurante em que sentamos. Já sem ressaca, Jânio me pareceu extasiado com a paisagem. Lá em baixo, o Mar da Galiléia, o vale do rio Jordão; no planalto, uns 30 quilômetros adiante, Damasco, a capital da Síria, estava visível.


Golã, 1968, arquivo pessoal

Um ano antes, em 1981, Israel tinha anexado o Golã, com lei aprovada no Parlamento. Um ato isolado, não reconhecido pela ONU. Mas para devolvê-lo, em troca de acordo de paz, como aconteceu com o Sinai, a maioria dos 120 deputados terá que ser a favor. Nas encostas, israelenses começaram a produzir um vinho ótimo, que muitos países jamais importaram porque originário de território ocupado. Os habitantes das colinas são drusos, muitos dos quais amigos de Israel, alguns tão amigos que servem o exército israelense. Os que não são amigos, também não são inimigos de pegar em armas, ao contrário dos palestinos na Cisjordânia e em Gaza. Um druso armado sempre me acompanhava quando arava a terra ao lado de Gaza, no kibutz Reim, no deserto do Neguev.
Levei Jânio a um posto de observação de soldados israelenses. Não havia ainda rebeldes sírios, guerrilheiros do Hezbollah e guardas iranianos que só chegaram com a guerra civil síria, agora nos estertores, depois de sete anos e quase meio milhão de mortes. Ali reinava o silêncio; o perigo era apenas uma lembrança de quando os sírios disparavam nos kibutzim israelenses na planície. Ao estudar a topografia e a distância, Jânio exclamou:
-Mas daqui, com uma passarinheira, acerto qualquer um lá embaixo!
Jânio voltou para o Brasil no dia seguinte. Hoje, 37 anos depois, o presidente Donald Trump reconheceu o direito de Israel às colinas do Golã. Um presente eleitoral para Bibi Netanyahu, que quer se reeleger mais uma vez, em 9 de abril. Outro reforço eleitoral será dado pelo presidente Bolsonaro, que visita Israel no fim deste mês. 

O terrorista sem nome

Premiê Jacinda Ardern

A primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, está dando um exemplo ao não citar o nome do atirador que massacrou 50 pessoas em duas mesquitas na cidade de Christchurch:

– Ele é um terrorista. Um criminoso. Ele é um extremista. Mas ele, enquanto falo, não será nomeado – disse Ardern num discurso no Parlamento.

O atirador não terá o que mais o mobilizou: ser conhecido, ou reconhecido, chamar a atenção.

Os dois atiradores da escola em Suzano queriam superar o ataque em Columbine há 20 anos, com 15 mortos, incluindo os dois atacantes. Aí está uma prova da influência causada pela espalhafatosa cobertura de jornais e tevês a atentados terroristas. O terror é reinventado sempre mais para conquistar atenção e ocupar espaços na mídia. O assassino neozelandês apresentou sua façanha ao vivo, online, e distribuiu os links antes de apertar o gatilho.

– Eu imploro a vocês – continuou a premiê Ardern aos membros do Parlamento: -Falem os nomes dos que morreram, no lugar do nome de quem os matou. Ele pode ter querido notoriedade, mas nós, na Nova Zelândia, não lhe daremos nada. Nem mesmo o seu nome.

Transmissão ao vivo do massacre nas mesquitas

Como a mídia deveria reagir a atentados? Não noticiá-los me parece muito difícil. É notícia. Em Utrecht, na Holanda, depois de um atirador matar três pessoas dentro de um bonde, a polícia divulgou mensagens on-line pedindo que a população ficasse em suas casas. Advertia: há um terrorista à solta. Pelo tuíte, os desdobramentos do atentado eram atualizados às centenas, a cada segundo. Não há como interromper o fluxo das notícias na internet. O Facebook levou tempo para retirar do ar a transmissão do massacre nas mesquitas.

Utrecht (foto EFE)

Os provedores neozelandeses pediram ao Facebook, Twitter e Google que participem da discussão do governo da premiê Ardern sobre como negar acesso a conteúdo criado por assassinos.

O Estado Islâmico (EI) divulgou vídeos da degola de prisioneiros e até criou uma revista de boa qualidade gráfica para manter vivo o seu esforço de recrutamento de mais jihadistas. Perdido o Califado que construía na Síria, o EI não morreu. O porta-voz dele ressurgiu agora, depois de seis meses de silêncio, para clamar por retaliação aos mortos da Nova Zelândia.

“As cenas do massacre nas duas mesquitas devem despertar aqueles que foram enganados e incitar os apoiadores do Califado a vingar por sua religião” – disse Abu Hassan al-Muhajir, num áudio de 44 minutos. Para ele, o atirador seria um prolongamento da campanha contra o EI.

Duelo na Venezuela

Um duelo de concertos pela Venezuela está começando daqui a pouco, ao meio-dia da Brasília, na ponte Tienditas, que tem um pedaço colombiano e outro venezuelano.

Organizado pelo bilionário britânico Richard Branson, o Live Aid Venezuela tem a promessa de ser transmitido para o mundo com o objetivo de arrecadar 100 milhões de dólares em 60 dias.

O show de Maduro ganhou este título: “Tire as mãos da Venezuela”. Deve durar dois dias, seguidos de dois feriados—e, então, pelo carnaval antecipado por decreto. Os venezuelanos querem mais folia que alimentos e remédios, entende o governo.

O co-fundador da banda Pink Floyd, Roger Waters, atacou o Live Aid, por “não ter nada a ver com ajuda humanitária (…) com os venezuelanos, com democracia, com liberdade—mas, sim, apenas com Bronson”. Para Waters tudo vai bem na Venezuela, e lá nem ditadura existe.

Para Maduro, o Live Aid é um complô de Trump para invadir o país, enquanto que, para seu vice-presidente, as 300 toneladas de ajuda são veneno cancerígeno para a população.

O show de Bronson, inspirado no de Bangladesh e da Etiópia, contra a fome, contava até a estreia com 32 artistas, entre latinos, americanos e um dj sueco, mas nenhuma celebridade. Ele explica que aceitou um apelo de Guaido, o presidente interino já reconhecido por cerca de 50 nações, para ajudar a Venezuela a sair do impasse. Os artistas do show de Maduro serão todos venezuelanos.

Quem vencerá o duelo dos concertos?  Depende: se a ajuda humanitária entrar sábado no país, que está com as fronteiras aéreas, terrestres e marítimas fechadas, vitória de Bronson. O  colombiano Bruno Ocampo, empresário parceiro do Live Aide, garante que já tem pronta a logística para cruzar a fronteira, mas que não pode ainda revelá-la para “não comprometer os esforços feitos”.

O duelo só não levou em conta um detalhe: o fuso horário. A Colombia está uma hora adiante da Venezuela, duas horas de Brasília.

Estado da Desunião

O presidente Trump deve apelar à união nacional em seu discurso desta noite sobre o Estado da União – ele que é acusado de desunir os americanos. Será o “estado da desunião”, publicou um jornal.

Alguns repórteres tiveram acesso ao rascunho do discurso. O parágrafo que mais chama a atenção diz:

Juntos poderemos romper décadas de impasse político”, e segue propondo “pontes sobre antigas divisões, cicatrização de velhas feridas, construção de novas coalizões, e ainda a iniciativa deforjar novas soluções e de destravar a extraordinária promessa do futuro da América”.

Da revista The New Yorker

Para ganhar aplausos, Trump vai se comprometer a reduzir preços de drogas à venda sob receita médica, uma reivindicação bipartidária. Ele deverá falar de sua ofensiva contra Maduro, da Venezuela; das relações comerciais com a China; de seu próximo encontro com Kim Jong Un, da Coreia do Norte; e a retirada de tropas americanas das guerras na Síria e no Afeganistão, mas sem dar trégua ao terror do estado islâmico.

Suspensa no ar ficará a decisão de declarar emergência nacional para viabilizar a construção de um muro na fronteira mexicana.

Dois ex-empregados ilegais do clube de golfe de Trump, na Flórida, foram convidados pelos democratas – um deles já legalizado. Também foi reservado um assento para um sobrevivente de matanças perpetradas por atiradores solitários. É a pressão de militantes pelo controle de armas.

O Congresso terá três dias, até a sexta-feira, para preparar uma proposta de orçamento para a assinatura de Trump. O prazo se esgota dia 15. Como o dinheiro para o muro não será incluído, o governo americano está ameaçado de nova paralisia, depois da que vigorou da véspera de Natal até 27 de janeiro, um recorde de 35 dias.